“Trade Compliance” na Lei Brasileira Anticorrupção

Publicado em: 24/10/2013

Alexandre Lira de Oliveira

Em muitos países a existência de controles internos que assegurem a regularidade das operações de comércio internacional é uma exigência operacional, em virtude de programas de incentivo para as empresas que comprovem o cumprimento das normas aduaneiras (“customs compliance”).

No Brasil, esta preocupação é insípida, fazendo parte da realidade de um pequeno grupo de empresas. Com o advento da Lei 12.846/13, conhecida como a “Lei Brasileira Anticorrupção”, será necessária uma mudança de paradigma.

O padrão mundial de modernização aduaneira está fundamentado num conceito desenvolvido no início dos anos 2000:a parceria entre Aduana e Empresa. Desenvolvida na Suécia e tornado mundialmente aplicável pelo “Safe Frame work of Standards”[1]da Organização Mundial das Aduanas (OMA), a parceria Aduana-Empresa consiste na concessão de vantagens operacionais pela Administração Aduaneira às empresas consideradas confiáveis. Para serem assim reputadas, as empresas atuantes em comércio internacional devem ser cumpridoras voluntárias das normas que regem as operações aduaneiras e o comércio internacional, investindo em programas de “Trade Compliance.”

Em diversos países do mundo os operadores do comércio internacional podem submeter-se voluntariamente à avaliação de controles internos para receber os benefícios especiais, que geralmente são concedidos pelo pacote do “Authorized Economic Operator” (AEO). Este nome, criado pela OMA, é usado pelos integrantes da União Europeia e diversos outros países do mundo. Em outras nações denominações distintas são utilizadas, como o programa de “Customs-Trade Partnership Against Terrorism” (C-TPAT) nos Estados Unidos e o “Secure Trade Partnership” (STP) em Singapura. No Código Aduaneiro do Mercosul há a previsão do “Operador Econômico Qualificado”, mas ainda não houve a implantação do mesmo no Brasil, sendo que as manifestações mais recentes da nossa Aduana são no sentido de que o país deverá primeiro aceder à Convenção de Quioto Revisada para posteriormente criar um programa completo de AEO.

Temos localmente no Brasil um programa oficial de “customs compliance”,  que é chamado de Linha Azul e oferece despacho aduaneiro expresso às empresas habilitadas. Em seu formato atual estabelecido pela IN SRF 476/04, o programa pode ser considerado bem sucedido, reunindo hoje 50 empresas[2] que representam uma parcela acentuada da produção industrial do Brasil. Contudo – mesmo diante da inolvidável relevância das empresas que fazem parte do seleto grupo do Linha Azul – temos que considerar que trata-se de uma parcela insignificante do universo de empresas atuantes no Brasil. Tomando com base os dados oficiais de importação fornecido pelo MDIC, 2.155 empresas importaram mais de 10 milhões de dólares no ano de 2012.

A pergunta que nos surge diante dos argumentos levantados é um tanto óbvia: estariam as demais empresas com alto volume de operações de comércio internacional preparadas para enfrentar as exigências da nova “Lei Brasileira Anticorrupção” no que tange às suas operações de comércio exterior?

Diante das infrações tipificadas na Lei 12.846/13, encontramos situações que podem ser relacionadas às operações de importação e exportação de mercadorias. A principal delas é similar ao tipo penal do crime de corrupção ativa, mas mais rigorosa na sua caracterização: enquanto no artigo 333 do Código Penal (“oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”) a materialização do crime depende da prática, omissão ou materialização do ato de ofício, no artigo 5º, inciso I, da Lei 12.846/13 (“prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada”) não há necessidade da materialização da consequência almejada. Trata-se portanto de uma infração formal.

Destacamos este dispositivo da Lei 12.846 como o mais preocupante pela falta de integridade que pode ser observada nas operações de comércio internacional cursadas no Brasil. Embora hajam movimentos para mudar essa imagem – que é reverberada mundialmente – os que atuam nas operações aduaneiras vivenciam corriqueiramente casos de corrupção, constantemente divulgados pela imprensa nacional.

A Lei 12.846 transfere o ônus de vigilância da integridade nas operações aduaneiras para o setor privado, sendo as empresas mais gravemente penalizadas do que os próprios agentes públicos envolvidos[3]. Dentre as punições previstas pela Lei Anticorrupção estão veiculadas a multa de até 60 milhões de reais, reparação integral dos danos causados, perdimento de bens e direitos, suspensão ou dissolução da empresa, proibição de usar benefícios fiscais e contrair financiamentos públicos e ter a sua punição divulgada em jornais de grande circulação e no Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP). Além disso, obviamente, mantêm-se as punições de natureza criminal.

Insta salientar que as empresas respondem objetivamente pelas infrações cometidas, ou seja, sua responsabilidade independe de vontade ou culpa. Além disso, também os dirigentes da empresa punida responderão pelas infrações, arcando com multas com seus bens pessoais, sendo nesse caso a sua responsabilidade dependente de culpa ou vontade[4].

Outros tipos previstos pela Lei 12.846 com reflexo aduaneiro estão presentes também no artigo 5º, nos incisos III (“comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados”) e V (“dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional”).

No primeiro caso, entendemos que operações por encomenda ou conta e ordem, quando não revestidas das devidas formalidades, poderão resultar em investigações. Na outra hipótese, a ausência de informações elementares, como uma robusta descrição do material importado ou vínculo entre importador e exportador, podem ser entendidos como um ilícito nos termos da nova lei. Em ambas as situações, acreditamos que a interpretação da norma pela Fiscalização Aduaneira pode resultar em entendimento de que esta é vinculada a oficiar as autoridades competentes pela apuração das infrações à Lei 12.846 quando situações como as descritas ocorrerem.

Pelo raciocínio demonstrado nesse texto, fica claro que a “Lei Brasileira Anticorrupção” traz um novo paradigma que deverá ser seguido pelas empresas com atividades no país. Mesmo aquelas que não almejam benefícios operacionais – como os trazidos pelo Linha Azul – deverão ter um programa de “Trade Compliance”, revisando a qualidade das informações que apresenta para a Aduana e também a integridade de seus funcionários e agentes logísticos. Empresas que tem alto volume de operações de importação e exportação e continuem a insistir em práticas arcaicas e a negligenciar investimentos em melhores controles internos para a área de comércio exterior poderão ser duramente punidas nos termos da Lei 12.846, sofrendo danos financeiros e à imagem corporativa, muitas vezes irreversíveis.



[1]Sobre o assunto leia o artigo “Estrutura Normativa da Organização Mundial das Aduanas (OMA)” https://www.liraatlaw.com/conteudo/index.php?option=com_content&view=article&id=18:natalia-semeria-ruschel&catid=4&Itemid=15

[2]A relação das empresas habilitadas ao Linha Azul, ainda desatualizada com as recentes habilitações da Editora Abril e Delphi Automotive, está disponível em http://www.receita.fazenda.gov.br/aduana/linhaazul/emphab.htm.

[3]Conforme artigo publicado no site do Sindicato Nacional dos Analistas Tributários da Receita Federal do Brasil, o Ministério da Fazenda encaminhou à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional um texto de Lei Orgânica do Fisco que estabelece, entre outras mudanças, que os auditores-fiscais terão direito à prisão especial em sala especial de Estado Maior e que não poderiam ser presos em flagrante: somente por ordem judicial escrita. Leia o artigo em http://sindireceita.org.br/blog/uma-lof-para-por-fim-a-receita-federal-e-desestabilizar-o-sistema-tributario-brasileiro/

[4]Sobre a responsabilidade das empresas e dirigentes corporativos nos termos da Lei 12.846, veja nosso artigo “A Lei 12.846/13 e a responsabilização dos gestores corporativos” em https://www.liraatlaw.com/conteudo/a-lei-1284613-e-a-responsabilizacao-dos-gestores-corporativos.

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