Efeitos do fim da tolerância da corrupção de autoridades públicas no exterior e no Brasil

Publicado em: 27/08/2013

Rodrigo Priviero D’Abruzzo

Cauê Jorge de Almeida

Recentemente repercutiu no Brasil um dos maiores escândalos de corrupção mundial dos tempos atuais, em que figura como protagonista uma gigante empresa transnacional alemã, que convive há vários anos com este tipo de denúncia em diversos países, tendo sido condenada a multas ou realizando acordos que giraram, no total, valores acima dos 3 (três) bilhões de reais entre 2007 e 2008. A escalada das denúncias e os níveis a que alcançaram as irregularidades culminaram na emblemática queda do presidente da empresa à época além de diversos outros funcionários de altos cargos.

Em 2007 a empresa foi condenada na justiça alemã, em Munique, cidade de sua sede e, no mesmo ano, pela União Europeia por formação de cartel, sendo, no ano seguinte, alvo de processo também nos Estados Unidos, onde realizou um acordo com o Departamento de Justiça norte-americano que custou cerca de 800 (oitocentos) milhões de dólares à empresa. De extrema importância se coloca a investigação nos Estados Unidos, uma vez que o processo se deu por irregularidades ocorridas fora da jurisdição territorial americana, mas ainda dentro da alçada de competência do país, graças à aplicação do FCPA (“Foreign Corruption Practice Act”), norma criada ainda em 1977 que criminaliza a prática de corrupção de funcionários públicos estrangeiros por empresas que possuam sede nos EUA ou ações na bolsa americana, mesmo que sejam estrangeiras.

Apesar da adoção desta lei pelos Estados Unidos em 1977, estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), composta pelos países mais industrializados do mundo, aponta que, em 1998 apenas 14 países da OCDE negavam a possibilidade de dedução de impostos relacionados ao suborno. Pode parecer absurdo, mas muitos países efetivamente aceitavam que as empresas declarassem valores gastos com o suborno de autoridades no exterior como “despesas operacionais”, a serem deduzidas do faturamento bruto para determinação da base de cálculo do imposto sobre a renda da matriz em seu país natal.

O Canadá, os Estados Unidos e o Reino Unido negavam a dedutibilidade devido à ilicitude da corrupção em seus próprios países. O Japão, por sua vez, caracterizava o suborno de autoridades estrangeiras como despesas de entretenimento, não dedutíveis por definição. Já na Finlândia, na Grécia, na Hungria, na Irlanda, na Itália, na Coréia, no México, na Espanha e na Turquia os subornos simplesmente não se qualificavam como despesas dedutíveis. Dinamarca, Islândia, Noruega e Suécia, só permitiam a dedução se fossem documentados como despesas comerciais e se a prática de suborno fosse corriqueira nos países em que foi praticado. Nos demais países membros da organização, entre estes, a Alemanha os valores pagos a título de suborno de autoridades públicas estrangeiras eram tão dedutíveis quanto quaisquer outras despesas comerciais.[1]

Atenta a esta situação recorrente, a OCDE emitiu em 1995 a “Recomendação sobre a Dedução de Impostos de Suborno de Funcionários Públicos Estrangeiros”. A falta de força vinculante deste instrumento, porém, não alterou a situação, mas fez com que a atenção internacional recaísse sobre a questão. Depositado o foco dos países membros da OCDE sobre a corrupção internacional, adotou-se, em 1997, pela conferência convocada no âmbito da organização, a “Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais”, esta sim provida de caráter vinculante para os Estados integrantes na Convenção, entrando em vigor em 1999, resultando este instrumento jurídico no ponto de virada na questão da corrupção internacional.

A entrada em vigor desta convenção, bem como de diversas outras adotadas a este respeito[2], permitiu a cooperação entre os Estados e o entendimento da existência do instituto conhecido como “universalidade da jurisdição penal” em matéria de corrupção, que reza que qualquer Estado participante da convenção possui o direito de julgar um crime de corrupção mesmo que este não tenha ocorrido dentro de suas fronteiras. Percebe-se assim a criação de uma rede global de proteção contra a corrupção, uma vez que a adoção de dispositivo semelhante por conta dos Estados membros da OCDE, responsáveis pela maior parte do fluxo comercial, eliminaria em grande parte a lacuna jurisdicional, coibindo tais práticas onde quer que sejam realizadas.

Após analisar a situação sob a luz das legislações adotadas internacionalmente, não é de se espantar o comportamento adotado pela empresa alemã até meados da década passada. A Alemanha visava, através da possibilidade da dedução do suborno de autoridades estrangeiras dos impostos, incentivar entre outras coisas, o aumento da competitividade de suas empresas no cenário internacional. Referida mentalidade, adotada desde tempos remotos, advinda de um pensamento colonizador, ganhou ainda mais força frente a necessidade de reconstrução da economia alemã, destroçada após a segunda guerra mundial.

Com os olhos da comunidade internacional voltados para a questão da corrupção internacional – principalmente daqueles países que proibiam a prática do suborno e por tal motivo se encontravam em desvantagem nas negociações internacionais – a Alemanha ratificou a convenção supramencionada ao final de 1998, adotando legislação nacional específica visando ao melhor cumprimento da norma internacional também no ano de 1998, entrando ambas em vigor no começo de 1999, conforme relatório emitido no âmbito da OCDE sobre a adoção de medidas para o cumprimento da Convenção.[3] O Estado alemão acabou com a possibilidade da dedução do suborno de funcionários públicos estrangeiros dos impostos ao criminalizar este tipo de atuação.

Contudo, a mera adoção de um regulamento jurídico desprovido do respectivo embasamento social, com completa desconexão em relação à mentalidade até então reinante no país levou a uma lenta absorção das novas regras pela sociedade alemã, em que empresas transnacionais se viram, após anos e anos de atuação segundo o modelo até então vigente, incapazes e mesmo impossibilitadas de se adaptar à diametral mudança tão rapidamente. O processo cultural de mudança não acompanhou a vigência e eficácia do novo regramento, resultando em consequências danosas aos cofres e imagem da empresa objeto das investigações.

A discussão do evento internacional ocorrido há alguns anos na Alemanha ganha especial relevância no Brasil nos dias atuais. Signatário e parte na Convenção da OCDE, o Brasil só veio a adotar instrumentos internos de coercitividadeem Agosto de 2013, com a Lei 12.846/13, que estabelece a aplicação da legislação nacional aos atos lesivos praticados pelas empresas brasileiras contra a administração pública estrangeira, ainda que cometidos no exterior. Necessário destacar que a legislação brasileira foi além, ao punir não apenas os atos de corrupção contra autoridades estrangeiras, mas também contra a Administração Pública nacional, estipulando a responsabilidade objetiva – independente de vontade ou culpa – das pessoas jurídicas e a responsabilidade na medida de sua culpabilidade para os administradores ou dirigentes empresariais.

O mesmo ocorrido com o relevante grupo industrial alemão – no qual o processo cultural de mudança não acompanhou a vigência e eficácia do novo regramento – pode vir a ocorrer com empresas brasileiras. A corrupção é elemento endêmico na cultura nacional desde a nossa colonização, sendo difícil que a publicação da Lei 12.846/13 mude a tradição local de um momento ao outro. Para escapar de pesadas punições e terríveis danos à imagem corporativa, as empresas nacionais deverão colocar em alto patamar o valor do “Compliance”termo que pode, muito simplificadamente, ser compreendido como a conformidade da atuação da empresa à legislação.

A adoção de um “Programa de Compliance” pode ser a diferença entre uma atividade econômica tranquila por parte da empresa e a incidência de pesadas multas e, até mesmo, a responsabilização pessoal dos administradores e sócios e a dissolução da pessoa jurídica por lesão ao patrimônio público nacional ou estrangeiro.

Se mesmo em país de rígida metodologia de trabalho e disciplina, como é a Alemanha, a mudança cultural foi insuficientemente rápida para evitar o maior escândalo da história de uma das maiores corporações do mundo, no Brasil será ainda mais difícil criar o novo paradigma. Compete a nós, estudiosos e entusiastas da ética, levar adiante a bandeira da honestidade e ajudar as empresas e pessoas no Brasil a se adequarem à modernidade que enfim chegou a este país.



[1]http://www.oecdobserver.org/news/archivestory.php/aid/245/Writing_off_tax_deductibility_.html

[2]Confirma nosso artigo de 2009 sobre “Convenções Internacionais para Combate à Corrupção” https://www.liraatlaw.com/conteudo/convencoes-internacionais-para-combate-a-corrupcao

[3]http://www.oecd.org/daf/anti-bribery/anti-briberyconvention/42099167.pdf

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